
Autores: Alex Dalton e José Ricardo S. Monteiro
Naquela tarde, o sol estava a pino; o calor, insuportável. Eu era o patrulheiro de uma guarnição tática. Nossa barca patrulhava a Favela Pedreira, em Matozinhos. A viatura deslocava bem devagar, espremida numa viela; os retrovisores quase tocavam nos barracos.
De repente, a uns vinte metros do lado esquerdo da viatura, vejo um indivíduo correndo. A mente do policial já está condicionada: Se correu, é suspeito. Digo ao Cabo Luciano:
- Correu, correu! Pára! Um cara aqui ao lado saiu vazado quando viu a viatura.
Imediatamente, a viatura foi parada. Desembarcamos defronte a um barraco, onde, na entrada, encontrava-se uma menina de cerca de nove anos. Ela nos olhou assustada. Ao ser questionada, logo entregou que fora o pai dela quem havia evadido.
Sem demora, iniciamos as buscas num terreno baldio adjacente ao barraco. Cinco minutos e nada. O Sargento Augusto, comandante da guarnição, começou a gritar, blefando e fazendo pressão psicológica. Nada. De súbito, quando estávamos quase desistindo, o sargento viu o indivíduo deitado no chão. Imediatamente procedemos a abordagem verbal, determinando que ele colocasse as mãos na cabeça, se levantasse... Feita a busca pessoal, nenhum objeto ou substância ilícita foi encontrada.
Ainda no terreno baldio, no meio de um pequeno matagal, o indivíduo repetia e repetia que estava ali havia alguns minutos, vigiando uma galinha chocar. O Sargento Augusto insistiu em indagar por que ele havia corrido. O suspeito, um senhor de aproximadamente sessenta anos, rendeu-se aos questionamentos e assumiu que apenas havia se assustado ao ver a viatura. Ora, ninguém foge da polícia sem motivo. Era certo que ele estava devendo.
Fomos à sua casa. Se do lado de fora o barraco sem reboco e sem janela já não era bonito, no interior o cenário era ainda mais desolador. Apenas um cômodo, piso de cimento grosso cheio de buracos e todo sujo, roupas espalhadas pela casa, comida azeda no fogão e aquela menina de cabelos despenteados que não parava de chorar.
Reviramos a casa e nada. Alguma coisa estava errada. Ninguém corre à toa. O cara só podia estar pedido. O Sargento Augusto perguntou ao suspeito se ele era foragido. Ele tremeu. Tentou se esquivar da resposta, mas em seu semblante podíamos ver que fora esse o motivo de ele ter corrido. Para confirmar, o sargento consultou o prontuário criminal do indivíduo no COPOM. O despachante pediu para repetir o nome. A resposta veio confirmando o tirocínio policial. O sujeito era fugitivo da cadeia pública da cidade, onde cumpria pena por homicídio culposo.
O indivíduo não parecia ser perigoso, pelo contrário. Perguntei-lhe sobre o motivo de ele ter sido condenado e ter fugido da prisão. Assim ele me respondeu:
- Foi uma tremenda falta de sorte. Eu estava na igreja com minha esposa, que na época estava grávida dessa menina. Chegou um cidadão embriagado com um pedaço de pau na mão e começou a xingar todo mundo, reclamando do som alto. Minha esposa foi conversar com ele, pedindo calma, mas ele tratou ela com falta de respeito e tentou agredir ela. Eu não aceitei, nós brigamo, eu tomei o pedaço de pau e dei na cabeça dele. Por azar, ele tinha platina na cabeça e morreu. Eu fui preso. Minha esposa morreu no parto da menina. Quando o juiz me deu benefício do dia das mães, eu não voltei pra cadeia. Tinha que cuidar da menina e dos outros dois que ainda estavam pequenos. Tem mais de oito anos que eu tava foragido. Agora os senhores me pegaram. Eu sou trabalhador, faço tudo pelos meus filhos. Minha filha mais velha tem dezesseis anos e começou a trabalhar ontem em um salão de beleza pra me ajudar a cuidar dessa menina e do outro menino. O senhor tá vendo a casa assim, mas é porque eu não tenho tempo. Sou pedreiro, trabalho o dia inteiro. Meus vizinhos que tomam conta da menina quando tô trabalhando. Eu sou trabalhor, Seu Polícia.
O indivíduo realmente parecia trabalhador. Inclusive os vizinhos foram unânimes em dizer que ele só vivia para os filhos, que era um bom pedreiro e que era honesto. Antes de o colocarmos dentro da viatura, ele tirou uma nota de cinquenta reais e disse para a filha:
- Toma. É o dinheiro que o pai tem.
A garotinha se pôs aos prantos, começou a me puxar e disse:
- Por favor, moço, não leva meu pai, não. Eu já perdi minha mãe; como que vou ficar sem meu pai agora.
Meu coração quase partiu; me deu um nó na garganta. Mas não tínhamos escolha e, mesmo se tivéssemos, não sei...
Em seguida, nos dirigimos à delegacia, onde o foragido voltou para trás das grades. Talvez aquele não fosse o seu lugar. Tudo indicava que ele nunca mais iria cometer nenhum crime. Mas não cabe a nós policiais militares fazer julgamentos. Apenas cumprimos a letra fria da lei.
Às vezes, me recordo dessa ocorrência e penso se a justiça não é falha, se a lei não é fria demais. Quem errou deve ser punido, mas vendo tantos bandidos se beneficiando de lacunas legais, reflito se o certo seria aquele homem ter voltado para a prisão. Reflito sobre o que representou e representará para a menina, daquele momento em diante, o tom caqui da nossa farda, já que, apesar da obrigação de cumprir o nosso dever, talvez retiramos dela a única chance de chegar a algum objetivo na vida e quiçá de matar a sua fome e a dos seus irmãos a partir daquela tarde.
Fim
Nota: Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, fatos e lugares são frutos da imaginação do autor e usados de modo fictício. Qualquer semelhança com fatos reais ou qualquer pessoa, viva ou morta, é mera coincidência.
"É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” - Inciso IX do artigo 5º da Constituição Federal.
Parabéns aos autores do artigo!
ResponderExcluirQuem em sua jornada policial nao se deparou com tal situação? Este fato retrata bem como a letra da lei é fria e muitas vezes cega.
Parabéns, aos autores! Essa história me comoveu. Imagino o coração destes policiais ao ver a menina chorando. Quem tem filho é complicado ver uma situação desta. O serviço policial é mesmo muito complexo.
ResponderExcluirMeus parabens ao Sgt Monteiro e Alex, vcs são pessoas especiais e de um intelectual excepcional. Vcs 2 merecem pleitear muito suceeso em suas vidas, pois sao pessoas humildes e puras de coraçao. Abraços Gurgel.
ResponderExcluirExcelente texto, a história mostra como é ser humano e ser um policial, as lutas e provações que estes profissionais tem que passar todos os dias, a luta para fazer um julgamento do certo e errado, e se manter firme no cumprimento da lei e do dever.
ResponderExcluirÉ Dalton, tinha que ser vc. Enxerga que nem um sei o que. Brincadeiras a parte a história tem um lado triste. Trabalhei com o Dalton no Gepar da 180 cia. com um mês de formado ele participou de 4 ocorrências seguidas que resultou em apreensão de arma de fogo, 5 armas ao todo. O cara parece que adivinhava quem ia sair na rua armado. Aquela guarnição com Cb Araujo, Sd Quirino e Sd Dalton. rsrs...É Dalton,Gepar, Tático Móvel... e agora no transportes. Volta pro operacional camarada seu lugar é na rua.Abraço.
ResponderExcluirSeja essa história real ou fictícia ela é muito comovente!Parabéns pelo artigo e pela conjugação das palavras. Realmente existem dons diferentes para cada pessoa e tenho certeza que o seu é escrever e expor sempre a verdade. Muito sucesso! Abraço Édila Vitor.
ResponderExcluirMissão árdua esta nossa ! Temos que ser forte e imparciais para não incorrermos em crime ao como dizem-Tomarmos as dores do outro.O controle emocional é imprescindível aliado à calma e paciência."Quando o bicho pega,lembram de Deus e chamam a polícia.Depois que o perigo passa, esquecem de Deus e amaldiçoam a polícia".
ResponderExcluirNa atividade policial, somente fico triste com histórias que posso comprovar a veracidade. Essa prisão foi um fato isolado e o procedimento, além de correto, não me traria nenhuma tristeza. Gosto de uma frase: "Os olhos frios do policial destoa da realidade dissimulada das ruas."
ResponderExcluirO Gerente.
Realmente essa história me comoveu bastante. Os autores estão de parabéns.
ResponderExcluirDesejo a você Alex muito sucesso, e que em breve possa te chamar de Kadet Dalton, porque sei a garra e a determinação que vem tendo para conquistar seus objetivos. Ass: Karen
Parabéns amigos, pelo comovente texto.
ResponderExcluirParece até que conheço as personagens desta história.
Continuem compartilhando suas experiências com o mundo, pois estampa nosso lado humano.A PMMG e a sociedade agradecem.
Um abraço.
Cb Evandro.
ResponderExcluirMuito lindo o texto, voamos na imaginação do autor e na nossa mente passa milhões de fatos que deaparamos semelhante a este.
As vezes a lei que é falha mesmo, beneficia aquele que tem dinheiro, o pobre tem que depender de advogados do estado, defensores públicos, que olham com desprezo para o processos dos pobres, e o resultado é o que o juiz decidir.
Abraços.
o duro de trabalhar em equipe grande é isso aew. tem que combinar com muita gente pra fazer a coisa certa. por outro lado pra fazer a coisa errada tb fica mais dificil, se é que me entende, o que é ótimo. mas eu numa situação real dessa teria liberado o cara. problema que nunca vi situação como essa. gente boa na igreja dando paulada sem mais nem menos. outra questão é que pela cronica houve legitima defesa em favor de outrem. a vida, graças a Deus, é mais simples que tal cronica. Problema mesmo são os porcos que usam farda pra extorquir e ainda acham que estão colaborando com o fulano que ofereceu dinheiro pra se eximir da lei.
ResponderExcluiraconteceu comigo aqui em vespasiano, no meu caso o pai que cuidava de tres crianças estava devendo 17 mil de pensao pra uma filha que nao era legitima e ele regristra-la em seu nome. fazer o que neh tivemos que leva-lo. como as tres crianças estavam com fome e eu e o patrulheiro estavamos sem dinheiro levamos o preso para almoçar no ppo e ainda derrubamos tres marmitex ali no ppo para as crianças e a encaminhamos para o concelho tutelar. de hora acho que fizemos a coisa certa, temos que ser profissionais nestas horas, mais eh dificil. e se olharmos com o coraçao a gente acaba dando boi em certas situaçoes. abraçao a todos. eu gosto muito destas historias policiais, que se nao a vivenciássemos acharia que era inveridica.
ResponderExcluircompletando o dizer acima. na cia na epoca a gente ganhava uma folga nestas situaçoes de prisao de foragido e apesar de folga ser sempre bom eu nao consegui tirar esta, o cap nao entendeu ate hoje porque eu deixei pra traz. poe na conta do papa. lero lero eh mato.
ResponderExcluirÈ infelizmente temos que fazer cumprir as leis,pena que pessaos como este cidadão tem o mesmo valor perante a lei como um traficante qualquer"todos somos iguais perante a lei".Mas o fardo de ser policial é pesado demais,baixo salario,pressão dos que se acham superiores,desvalorização e o principal a falta de "DEUS"em nosso meio.
ResponderExcluirQueria apenas, dizer que essa história mostra que somos o unico seguimento atuante estadual ,neste caso agimos legalmente mas não há legitimidade social.
ResponderExcluirsgt Augusto
ResponderExcluirFiquei igualmente triste, tal qual meu exelente patrulheiro, àquela época, SD Dalton por ter que prender aquele cidadão. Válida foi a atenção durante o patrulhamento e trabalho coordenado da equipe.
Ótimo texto. demonstra que o que está por debaixo da farda também é um ser humano e que está sujeito a todo o tipo de emoção. Contudo a parte mais difícil da nossa profissão é controlar as emoções e aplicar a "letra fria da lei". parabens
ResponderExcluirMe emocionei bastante ao ler esse artigo, fico me imaginando quando acontecer comigo, eu que estou entrando na carreira militar agora, eu que ainda estou muito empolgado com a minha futura nova profssão, eu que não saberei o que fazer...
ResponderExcluirmuito bom.
ResponderExcluirÉ, SENHORES... QUE TEXTO...
ResponderExcluirFIQUEI A ME IMAGINAR NESSA SITUAÇÃO...
A NOSSA PROFISSÃO É MUITO GRATIFICANTE MAS, ÁS VEZES, MUITO INGRATA...
ENTRETANTO, COMO ALGUÉM SUPRA MENCIONOU, NÓS NÃO SOMOS AS PESSOAS MAIS CORRETAS PRA JUGARMOS, E SIM PRA CUMPRIRMOS O QUE "A LETRA FRIA DA LEI" NOS MANDA.
ABRAÇOS Á TODOS.
SD HENRIQUE 14°BPM/IPATINGA-MG
Caros amigos... confesso que já considerei a Lei uma deusa da sabedoria e da justiça....mas foi exatamente encontrando situações como a do "caso fictício'que vocês contaram que resolvi tomar outro caminho...minha consciência! Ela que me deixa dormir sem remorso. Foi difícil para mim entender que somente assim eu serviria à justiça...deixando de servir à Lei ocasionalmente!
ResponderExcluirParabéns!
EU COMO POLICIAL LIBERARIA O SUJEITO.E ORIENTAVA O MESMO A PROCURAR A DEFENSORIA PUBLICA DO ESTADO.EU ATÉ MESMO IA PESSOALMENTE COM ELE OUTRO DIA.ABRAÇOS
ResponderExcluirParabéns pelo nível intelectual dos militares mineiros.
ResponderExcluirPara se ter uma idéia, moro em São Paulo e dias atrás, um policial militar de São Paulo me perguntou: "Mas o que é dedo em riste?".
Palavras como: Neófito, tirocínio e outros que li neste Blog, deixariam/deixarão os militares paulistas meditabundos.
A conduta ética dos militares só valorizam sua profissão.Quanto a "Letra Fria" da Lei nada se pode fazer sem anuência do juiz.É lamentável.
ResponderExcluirA conduta ética dos militares só valorizam sua profissão.Quanto a "Letra Fria" da Lei nada se pode fazer sem anuência do juiz.É lamentável.
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